O HOMEM INVISÍVEL
O HOMEM INVISÍVEL
Na missa da padroeira, sentei-me numa cadeira lateral. Além dos
celebrantes via-se muitos rostos conhecidos. Pessoas que moravam ali e outras
tantas que foram para lá com o mesmo fim: celebrar a Virgem do Carmo.
Dentre os rostos conhecidos um me chamou a atenção. O olhar profundamente
triste, perdido no espaço, no tempo e distante desse mundo. Das muitas vezes
que estive lá, esta foi a primeira que vi o Manoel entre tantas pessoas. Mesmo
com aquele olhar tristonho estava muito compenetrado de mãos dadas com a sua
Joana, ocupando o lugar que, como cidadão, era seu por direito. Até então o via
sempre periférico, arredio, solitário, ajudando na casa da festa, mas invisível
Voltei para o passado. Retornei à minha infância e pus-me a recordar,
esforçando-me ao máximo para lembrar de detalhes.
Chegaram não se sabe quando. Pai, mãe
e filho vieram de terras distante, Porangatu – GO. Carregavam tudo que tinham. Se
estabeleceram sem conhecer ninguém, nessa terra para eles estranha. Compraram
uma pequena casa na rua que passa nos fundos da Igreja. Moraram por pouco
tempo. Desfeito a compra, foram morar noutro canto, um pouco mais distante da
Igreja Matriz, bem próximo ao grupo escolar. Logo faleceu o pai. Por algum
motivo, ele e a mãe se mudaram. Foram morar numa pequena casa de dois cômodos,
com paredes de enchimento, coberta com palha piaçava. Ficava no caminho que
leva ao Arpoim, já bem próximo ao córrego Sucuri.
Viviam sós, isolados, enxergados por todos,
mas vistos por muito poucos. Os mesmos poucos que os ajudavam. Em época de
plantio alguém lhes dava um “eito” ou uma “quarta” de terra. Plantavam de quase
tudo um pouco. O que fosse necessário para matar a fome por algum tempo. Uma muda de roupa usada para cobrir as
vergonhas, um ou outro remédio, quando as “meizinhas” do mato não davam volta
nas dores. Fora a isso procuravam meios para sobreviver no dia a dia. Manoel
mal falava, quando muito gaguejava algumas palavras. Nascera com a língua presa.
Da fala não tinha o dom. Seguiam sua sina, rompendo, como Deus quisesse.
Vez por outra, à noite, “faxinavam” com tochas de pati seco nas margens
do Sucuri. Quando a sorte sorria, conseguiam um peixe bom. Usavam as costas do
cutelo só pra quebrar o espinhaço. Imobilizava a “traíra” e garantia a refeição
do dia seguinte. Matava a fome e seguiam vivendo, invisíveis. Um latido diferente
da cadela, como o de costume, indica que algo está “acuado”: um buraco, um
tatu, uma enxada, pronto, a comida pra mais dois dias estava garantida. Mais
dois dias invisíveis. Abóbora de monturo, dois pés de anduzeiro, alguns pés de
mandioca mansa, maxixe e quiabo, misturas para a canja. Proteína fornecida por
ovos de duas ou três galinhas preservadas à exaustão, se alimentando de
gorgulho, folhas, minhocas, gafanhotos, grilos, e tantos outros insetos.
Não se sabe por qual motivo tiraram
o nome de gente da mãe e lhe deram nome de bicho. Maria Marques passou a ser
Maria “Mucura” – mamífero onívoro solitário, marsupial, espécie de gambá de
orelha branca. Manoel, por consequência, passou a ser Manoel de Maria “Mucura”.
Mas isso pouco ou nada para eles importava. Seguiram assim.
Ao morrer, Maria entregou seu único
filho para o mundo criar. Chegou a vez de Manoel perder o Marques do nome. Assim
como a defunta mãe, deram-lhe, por definitivo, também, nome de bicho e passou a
ser chamado Manoel Mucura. Pouco lhes importava ter nome de bicho. Haviam se
transformado em natureza. Eram terra, mata, rios e animais. Por que não mucura?
Maria, sábia, só pode deixar para o
filho aquilo que aprendeu com as necessidades: pedir silenciosamente. Chegar na
hora certa aos lugares certos, onde fosse possível uma boa alma lhe matar a
fome. Por anos assim foi vivendo. Sozinho, sem nenhum documento, não era só um
invisível social, mas também um invisível legal. Manoel foi por muito tempo um
pária.
Já adulto, um anjo, travestido de mulher, pôs-se em seu caminho e lhe deu
guarida. Domingas providenciou os documentos necessários para torná-lo cidadão
reconhecido pelo estado. De pária, tornou-o visível legal. Pôde, assim, garantir o auxílio oficial
garantido pelo Estado aos mais necessitados. Agora com casa própria, por
interseção do seu anjo, tem onde se abrigar. Nesse novo tempo, deixou de ser
enxergado para ser visto por muitos.
Em época dos festejos, adornado com penachos, saiote de seda colorido sobre
as calças e um reco-reco feito de cabaça, Manoel dança o lundu no grupo de congos que sai pelas ruas de Monte do Carmo no
dia 18 de julho, na festa da Padroeira. Mas um homem só, é um homem solitário. O
seu anjo já o sabia. Intercedeu mais uma vez e lhe proporcionou uma
companheira, Joana Reis Rodrigues. Casaram-se no dia 14 de fevereiro de 2014 no
cartório de Registro Civil. Com ela, dança nos bailes públicos da “Casa da
Festa” na festa da Padroeira.
Hoje, o octogenário, embora continue tendo o nome de bicho, Manoel, de pária, enfim, foi feito visível.
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