terça-feira, 28 de novembro de 2023

O HOMEM INVISÍVEL

O HOMEM INVISÍVEL

 

Na missa da padroeira, sentei-me numa cadeira lateral. Além dos celebrantes via-se muitos rostos conhecidos. Pessoas que moravam ali e outras tantas que foram para lá com o mesmo fim: celebrar a Virgem do Carmo.

Dentre os rostos conhecidos um me chamou a atenção. O olhar profundamente triste, perdido no espaço, no tempo e distante desse mundo. Das muitas vezes que estive lá, esta foi a primeira que vi o Manoel entre tantas pessoas. Mesmo com aquele olhar tristonho estava muito compenetrado de mãos dadas com a sua Joana, ocupando o lugar que, como cidadão, era seu por direito. Até então o via sempre periférico, arredio, solitário, ajudando na casa da festa, mas invisível

 

Voltei para o passado. Retornei à minha infância e pus-me a recordar, esforçando-me ao máximo para lembrar de detalhes.

 

          Chegaram não se sabe quando. Pai, mãe e filho vieram de terras distante, Porangatu – GO. Carregavam tudo que tinham. Se estabeleceram sem conhecer ninguém, nessa terra para eles estranha. Compraram uma pequena casa na rua que passa nos fundos da Igreja. Moraram por pouco tempo. Desfeito a compra, foram morar noutro canto, um pouco mais distante da Igreja Matriz, bem próximo ao grupo escolar. Logo faleceu o pai. Por algum motivo, ele e a mãe se mudaram. Foram morar numa pequena casa de dois cômodos, com paredes de enchimento, coberta com palha piaçava. Ficava no caminho que leva ao Arpoim, já bem próximo ao córrego Sucuri.

          Viviam sós, isolados, enxergados por todos, mas vistos por muito poucos. Os mesmos poucos que os ajudavam. Em época de plantio alguém lhes dava um “eito” ou uma “quarta” de terra. Plantavam de quase tudo um pouco. O que fosse necessário para matar a fome por algum tempo.  Uma muda de roupa usada para cobrir as vergonhas, um ou outro remédio, quando as “meizinhas” do mato não davam volta nas dores. Fora a isso procuravam meios para sobreviver no dia a dia. Manoel mal falava, quando muito gaguejava algumas palavras. Nascera com a língua presa. Da fala não tinha o dom. Seguiam sua sina, rompendo, como Deus quisesse.

Vez por outra, à noite, “faxinavam” com tochas de pati seco nas margens do Sucuri. Quando a sorte sorria, conseguiam um peixe bom. Usavam as costas do cutelo só pra quebrar o espinhaço. Imobilizava a “traíra” e garantia a refeição do dia seguinte. Matava a fome e seguiam vivendo, invisíveis. Um latido diferente da cadela, como o de costume, indica que algo está “acuado”: um buraco, um tatu, uma enxada, pronto, a comida pra mais dois dias estava garantida. Mais dois dias invisíveis. Abóbora de monturo, dois pés de anduzeiro, alguns pés de mandioca mansa, maxixe e quiabo, misturas para a canja. Proteína fornecida por ovos de duas ou três galinhas preservadas à exaustão, se alimentando de gorgulho, folhas, minhocas, gafanhotos, grilos, e tantos outros insetos.

Não se sabe por qual motivo tiraram o nome de gente da mãe e lhe deram nome de bicho. Maria Marques passou a ser Maria “Mucura” – mamífero onívoro solitário, marsupial, espécie de gambá de orelha branca. Manoel, por consequência, passou a ser Manoel de Maria “Mucura”. Mas isso pouco ou nada para eles importava. Seguiram assim.

Ao morrer, Maria entregou seu único filho para o mundo criar. Chegou a vez de Manoel perder o Marques do nome. Assim como a defunta mãe, deram-lhe, por definitivo, também, nome de bicho e passou a ser chamado Manoel Mucura. Pouco lhes importava ter nome de bicho. Haviam se transformado em natureza. Eram terra, mata, rios e animais. Por que não mucura?

Maria, sábia, só pode deixar para o filho aquilo que aprendeu com as necessidades: pedir silenciosamente. Chegar na hora certa aos lugares certos, onde fosse possível uma boa alma lhe matar a fome. Por anos assim foi vivendo. Sozinho, sem nenhum documento, não era só um invisível social, mas também um invisível legal. Manoel foi por muito tempo um pária.

Já adulto, um anjo, travestido de mulher, pôs-se em seu caminho e lhe deu guarida. Domingas providenciou os documentos necessários para torná-lo cidadão reconhecido pelo estado. De pária, tornou-o visível legal.  Pôde, assim, garantir o auxílio oficial garantido pelo Estado aos mais necessitados. Agora com casa própria, por interseção do seu anjo, tem onde se abrigar. Nesse novo tempo, deixou de ser enxergado para ser visto por muitos.

Em época dos festejos, adornado com penachos, saiote de seda colorido sobre as calças e um reco-reco feito de cabaça, Manoel dança o lundu no grupo de congos que sai pelas ruas de Monte do Carmo no dia 18 de julho, na festa da Padroeira. Mas um homem só, é um homem solitário. O seu anjo já o sabia. Intercedeu mais uma vez e lhe proporcionou uma companheira, Joana Reis Rodrigues. Casaram-se no dia 14 de fevereiro de 2014 no cartório de Registro Civil. Com ela, dança nos bailes públicos da “Casa da Festa” na festa da Padroeira.

 

Hoje, o octogenário, embora continue tendo o nome de bicho, Manoel, de pária, enfim, foi feito visível. 

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