quarta-feira, 29 de novembro de 2023

AS VISITAS QUE RECEBI NA PANDEMIA

 

               No dia 23 de março de 2020, depois que foi decretado o isolamento para o cumprimento da “quarentena” por conta da pandemia do Covid19. Ocupamos, com autorização, o apartamento da Rosina no bairro Água Verde em Curitiba.

“Isolados sim, sozinhos nunca!” era o que se ouvia nos noticiários locais. A partir daí, não podendo receber visitas, mesmo assim passei a ser visitado com frequência.

 

1.      Primeiro, no dia 25/03/2020, visitou-me o indiano Jiddu Krishnamurti. Não o conhecia. Falamos Sobre Liberdade por muito tempo. Pura filosofia. Levou-me a entender e assimilar esse conceito. Confesso que, ao contrário do que aparenta, não é nada fácil. Convenceu-me de que a liberdade é algo quase inalcançável. Quando pensamos que somos livres, isso não passa de abstração. Sempre algo nos limita: religião, clube social, partidos políticos, ideologias, em fim, quando pensamos que temos liberdade, na verdade estaremos sempre impedidos desse exercício.

 

2.      Alguns dias depois, 30/03/2020, recebi a visita do russo Lev Tolstói. Ele veio me fazer um relato sobre A Morte de Ivan Ilitch. Impressionou-me, em todo relato, o fato de Ivan Ilitch mesmo com a posição de destaque social que adquiriu como brilhante advogado e posteriormente como promotor de justiça foi desterrado em sua própria casa ao ficar doente. Apesar disso, pouco antes de morrer, encontrou sentido em sua vida ao estabelecer uma relação de verdadeira amizade e dedicação mútua com o ajudante e copeiro que o servia.

 

3.      Mesmo no isolamento, numa das minhas fugidinhas em 06/04/2020, encontrei o paulistano Willy Schumann num sebo da Av. Rep. Argentina. O convidei para um café e me trouxe a Cidade dos Monges. Willy disse-me que, em determinado momento, vendeu tudo que tinha em S. Paulo e viajou para a Alemanha em busca de novas possibilidades e viver a vida mais intensamente. Em Munique, a cidade dos monges, viveu uma grande paixão. As circunstâncias do destino o levaram para um nível de autorreflexão, além da sua razão.

 

4.      Alguns dias depois, de surpresa, chegou Luís Fernando Veríssimo. Muito engraçado com As Mentiras que os Homens Contam.  A essa altura do isolamento estava mesmo precisando de um relax e ele chegou na hora certa com suas crônicas perspicaz, engraçadas e muitas delas bastante mordaz. Veríssimo é, sempre, uma excelente companhia.

 

5.      Em 13/01/2020 fiz contato com Maria Valéria Rezende, mas só dois meses depois deu o ar da graça. Foi uma dessas visitas que não se esquece. Do seu Vasto Mundo viajamos por narrativas interligadas de um povo da vila de “Farinhadas” situada em algum ponto do Nordeste brasileiro que ela criou. Fala de mulheres de fibra, homens destemidos, artistas itinerantes, charlatões, beatas, jovens sonhadoras, e religiosos progressistas. Do professor Paulo Afonso, traído por Lindinaura quis sumir de Itapegi. Sonhou em ir pra Pasárgada não pra ser amigo de nenhum rei, mas para escolher uma que substituísse Lindinaura. Procurou em todos os mapas, do Brasil e do mundo. Perguntou a todos onde ficava Pasárgada, ninguém sabia? Ao descobrir que era divagações do poeta a contra gosto voltou para Itapegi.  Esses personagens se entrelaçam pare enriquecer a história de um solo rico, apesar de castigado pelas intempéries que tudo vê e tudo grava.

 

6.      O amigo Geraldo me recomendou a americana Jannifer Egan. Chegou e começamos a conversar sobre O Torreão. Sabe essas histórias intricadas e cheias de meias voltas? Pois é! Foi aí que nos encontramos num torreão. Um castelo transformado em hotel para endinheirados curiosos e aventureiros. Na torre, a velha proprietária, decrépita, se apaixonou pelo jovem turista. Lembrei-me do Castelo de San Vicente que conheci em Monforte de Lemos na província de Lugo na Galícia. É, hoje, um hotel de luxo para turistas endinheirados. Lá também existe um torreão que imagino possuir um calabouço frio, com pesadas grades de ferro. Lembrei-me, também, que o castelo de Monforte havia sido propriedade da Condessa de Alba, uma das mulheres mais ricas e feias da Espanha. Casou-se com Alfonso Diez Carabantes, jovem advogado vários anos menos que ela. Lembrei-me também do Castelo Templário, do século XI de Ponferrada na Comunidade Autônoma de Castela e Leon, na Província de El Bierzo. Foi uma viagem e tanto!

 

7.      Voltei a me encontrar com Luis Fernando Verissimo.  Dessa vez conversamos sobre Ironias do Tempo. Nele, algumas pérolas atualizadas da política nacional. Falou da Dilma, do Lula e do PT. Passou por Bolsonaro e outras peças no seu gênero. Assim como da primeira visita, esta foi, também, um excelente elixir para diminuir ao estresse, se é que isso seja possível nessa condição de isolamento.

 

8.      Hoje apareceu por aqui a portuguesa Inês Pedrosa. Veio falar de Desamparo. É uma dessas mulheres de mente límpida e objetiva. Por muito tempo me falou sobre a saga de uma mulher que foi arrancada dos braços da mãe e trazida para o Brasil aos três anos. Mais de meio século depois volta a Portugal para conhecê-la. Esse é o ponto de partida do romance Desamparo, que com escrita inteligente, clara e repleta de humor, cria um universo singular, num típico povoado português, em que se cruzam vidas de vários continentes. Entre emigrações e imigrações de ontem e de hoje, seres solitários e escorraçados procuram formas de vida, enquanto tentam sobreviver à depressão econômica. - Muito bom!

 

O que inicialmente era pra ser quarentena já está na “cinquentena” sem perspectiva de terminar. Nós aqui, no apartamento da prima sem saber quando sairemos. Um despejo? Improvável!

Continuaremos aqui, confinados, a receber visitas.

 

9.      Hoje Maria Valéria Rezende voltou a me visitar. Trouxe O voo da guará vermelha e a história do pedreiro analfabeto Rosálio. Sai do sertão nordestino, atravessa o país em busca de alguém que o ajudasse a aprender ler e escrever. Encontrou na prostituta soropositivo que, embora pouco letrada, se dedicasse a tarefa. Irene torna realidade o sonho do pedreiro que, no processo do aprendizado, descobre o amor, a cumplicidade e a possibilidade de horizontes mais amplos. Valéria, graciosamente, conta essa história num formato inusitado que nos remete à sonoridade nordestina. Essa história foi contada, com graciosa harmonia, como se fosse um cordel.

 

10.     Nessa visita Maria Valéria fala, também, de amenidades em Vampiros e Outros Sustos. 14 contos ou crônicas hilárias. A excêntrica professora de antropologia que cria, dentro de casa, vários animais: de cão, gato a cobra e camaleão todos com funções específicas para manter a casa limpa, sem salários. A história de pescador que ouviu o último suspiro da sereia. E por aí vai!

 

11.     Já na “sessentena” um desconhecido inglês: Herbert George Wells. Conversamos sobre as possibilidades, vantagens e desvantagens de um indivíduo tornar-se invisível a partir do seu romance O Homem Invisível. É uma situação intrigante e uma história bastante interessante. Bem elaborada, cheia de elementos que nos induz e explorar a imaginação. Embora a invisibilidade possa pareça vantajosa é, na verdade uma situação bastante perturbadora. Imagina você ser um indivíduo invisível, mas que tudo que lhe envolve, não! O que você veste, come, toma nas mãos são perfeitamente visíveis? É uma situação estranha e incômoda.

 

12.     Encontrei-me, por acaso, com o alagoano Graciliano Ramos num sebo da Rua Vicente de Machado, centro de Curitiba. Ali mesmo começamos a conversar sobre São Bernardo. Paulo Honório, o narrador de uma história que se passa na década de trinta. Paulo tenta revisitar dramas de sua família e conflitos internos. Nem a fazenda S. Bernardo, comprada por Paulo por um preço irrisório, nem professora Madalena, inicialmente contratada como alfabetizadora do seu empreendimento, com quem se casou, deu-lhe o sossego que tanto precisava. Avareza e ciúmes doentios levaram Madalena ao suicídio e ao total fracasso do seu empreendimento rural.

 

13.     Recebi uma visita superinteressante, não só por ter sido meu colega de escola, mas, sobretudo, como um amigo: Pedro Tierra (Hamilton Pereira). Já havia me adiantado sobre o lançamento do seu livro Pesadelo.

Tomei conhecimento de fatos novos daquela época. Por exemplo: a convivência, no cárcere, com José Porfírio e o seu misterioso desaparecimento; a sobrevivência no Barro Branco em São Paulo. Mas o que mais me chocou foram os detalhes da traição do companheiro de luta, o "filho do alfaiate". Da traição já tinha conhecimento. Desde quando o filho do alfaiate passou por Curitiba "tentando sair" do Brasil via Paraguai e nós cotizamo-nos para viabilizar a "fuga". Uma semana depois o Pedro caiu em Anápolis, enquanto o filho do alfaiate se apresentava em Brasília livre, leve e solto. Formou-se em medicina e segue a vida. Os detalhes da traição narrados por Pedro é revoltante e chocantes. Chocou mais porque o "filho do alfaiate" era do nosso círculo de amizades desde a adolescência em Porto Nacional.

 

Voltei ao sebo da Vicente de Machado mais duas vezes em dias diferentes. É sempre um bom lugar para encontros com pessoas interessantes.

 

14.     No 1º dia encontrei o mexicano Juan José Rodrigues. O levei pra casa e conversamos, em espanhol, sobre La CASA de las LOBAS. Já havia lido sobre Pompeia, mas La CASA de las LOBAS foi a fundo numa história de orgias levadas às últimas consequências envolvendo a alta sociedade local e os senhores do topo do poder de Roma. Em Pompeia, em se tratando de sexo, tudo era permitido, inclusive assassinatos e vinganças. La CASA de las LOBAS foi o mais sofisticado bordel até que as cinzas e larvas do Vesúvio o soterrou.

 

15.     No 2º dia, deparei-me com o gaúcho Moacyr Scliar. Passamos a conversar sobre Os Voluntários. Que história! Puta, puteiro, camelôs, candidato a pastor, mentirosos, amizades, amigos etc. Moacyr Scliar é um excelente contador de história. Por ser assim terminamos por, quase, realizar uma viagem para Jerusalém a bordo de um barco rebocador. Chegar a Jerusalém de barco...! Atravessar o Atlântico Norte, passar pelo estreito de Gibraltar e alcançar o Mediterrâneo para, então, descobrir que Jerusalém não fica a beira mar. Tinham a intenção de levar o amigo moribundo Benjamim só para lhe dar o alento de conhecer o muro das lamentações antes de morrer, como tanto sonhou. Ou, quem sabe, conseguir a milagrosa cura do câncer nos ossos que o consumia. O rebocador para essa empreitada estava aos pedaços. Explodiu antes de conseguir sair do porto do Rio Guaíba em Porto Alegre.

 

16.     Depois de muito anunciar por fim chegou a tão esperada visita da peruana/chilena Isabel Allende.  Foi um longo papo, em espanhol. Mergulhamos na história, não para buscar La isla bajo el mar, mas para retornar ao final do século XVIII e início do século XIX. Uma história de violência humana e amores proibidos, passando pela hipocrisia da minoria branca se impondo, à força, sobre a maioria negra, o tráfico negreiro e a exploração do homem pelo homem. A luta pela liberdade nas ilhas caribenhas e o sul dos EEUU. Uma belíssima e bem narrada história.

 

17.     Em 15/06/2020 reencontrei, por acaso, com Hermann Hesse depois de muitos anos. A última vez que o havia encontrado foi nos anos 70. Naquela época conversamos sobre “O lobo da estepe” e “Sidarta”. Hoje vamos concentrar em Demian.  A busca incessante de Emil Sinclair para encontrar a si mesmo. Nessa busca algumas coisas foram reveladoras. Sabemos, por exemplo, que existem o “divino e o demoníaco”. Ambos fazem parte de um todo. Se você ama somente um ou outro, amará, apenas, a metade do mesmo todo. Pela primeira vez ouvir falar em “abraxas”. Delícia e espanto, homem e mulher associados, o mais puro e o mais nefando confundido, funda culpa palpitando sob a mais terna inocência, o divino e o demoníaco tudo em um só: assim é abraxas. Uma conversa reveladora e instigante.

 

18.     No dia 24/06, finalmente retornou o grande Graciliano Ramos. Chegou dizendo que a nossa conversa séria demorada, ao longo de 694 páginas de Memórias do cárcere.  Foi detalhista ao falar da sua trajetória:  dos primeiros escritos; atuação profissional; envolvimento político. Em 1936 foi preso em Maceió. Passou por prisões em Recife e a sofrida transferência para o Rio de Janeiro, juntamente com 115 outros presos, jogados no porão imundo do navio Manaus, Viagem contada com minuciosos detalhes. Falou da passagem pela Casa de Detenção, onde encontrou vários conhecidos também encarcerados pelo Estado Novo (Ditadura Vargas), bem como grandes mulheres combatentes como Elisa Berger, Olga Prestes (Olga Benário), Maria Werneck, Carmen Ghioldi e Rosa Meireles. Todas ocupavam a cela 4. Com o passar do tempo conseguiram, por meio de um buraco feito na parede, manter discussões políticas de alto nível. Falou de torturas psicológicas e físicas, dos mais diversos métodos e sevícias sofridas por companheiros. Convivência com bandidos, homossexuais, malandros etc. Depois de quatro meses começou transferência para a temida Colônia Correcional da Ilha Grande, mas passaram pelo, não menos temido, Pavilhão dos Militares: piores momentos proporcionados pela violenta polícia de Filinto Müller, especialistas em torturas dignas das masmorras da idade média. Na Ilha Grande, o tratamento tinha a marca Filinto Müller. Subtraíram o seu nome. Passou a ser, simplesmente 3535.

Falou-me do retorno à Casa de Detenção do Rio de Janeiro e reencontrou vários amigos que fizera. Relatou da revolta que os detentos promoveram quando soubera da deportação de Olga Benário (Prestes) e Elisa Berger que a ditadura Vargas, com a aquiescência do STF, as entregou à Gestapo.

Foi uma conversa longa e esclarecedora envolvendo nomes e fatos da maior relevância da época denominada Estado Novo ou era Vargas.

Interrompeu a conversa e saiu sem se despedir.

 

19. Em 03/08/2020 encontrei-me com Lima Barreto no Sebo Capricho da Rua Carlos de Carvalho. fomos apresentados pela "orelha" do Triste fim de Policarpo Quaresma. Não tive dúvida e o convidei para um papo.

Fez um relato completo sobre a vida do major Quaresma, como era conhecido Policarpo, embora não fosse major. Homem de fina cultura e nacionalista extremado. Não admitia nada que não fosse brasileiro. Tomou aulas de violão, com Ricardo Coração dos Outros, por ser este instrumento genuinamente brasileiro. Era crítico do português ser a língua oficial no Brasil. Para ele não justificava usar uma língua emprestada quando tínhamos a língua mais bonita e sonora do mundo, o tupi-guarani, “língua originalíssima e aglutinante”. Por meio de um requerimento, escrito nessa língua, solicita aos congressistas, a oficialização do tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Alegando insanidade, o major foi internado no manicômio onde ficou por alguns meses. Ao sair, aconselhado pela afilhada Olga, adquiriu o sítio Sossego aonde se dedica à agricultura, cultivando apenas o que era genuinamente nacional: manga, abacate, abacaxi e coisas do gênero. Se recusou a cultivar batata inglesa, por ser inglesa. Por não querer se envolver em política, sofreu perseguições por parte dos políticos de Curuzu. Seguiu o Mal. Floriano Peixoto que assumiu a Presidência com a renúncia do Mal. Deodoro da Fonseca, mesmo reconhecendo que não era o ideal para governar o país: era fraco, sofria de preguiça mórbida, indolente sem comando e não gostava de obrigações.

Por ser um nacionalista convicto, extremado honesto e humano em excesso, foi preso e condenado, sem julgamento, por ter mandado uma carta denunciando os excessos da ditadura florianistas que, aleatoriamente, escolhia e condenava apenas apontando o dedo: esse, aquele, aquele também etc etc. Somente o Ricardo Coração dos Outros e a afilhada Olga, tentaram, sem sucesso a livrá-lo da morte, mas não conseguiram.

 

 

20. Em 27/08/2020 encontrei-me com Fernando Sabino acidentalmente num sebo frente ao shopping Palladium: A Nudez da Verdade. Relatou a incrível história do escritor “Proença” que, numa incrível sucessão de fatos se viu nu, solto pelas ruas do Rio de Janeiro, fugindo e sendo perseguido como um perigoso tarado. Ao final, chegando, finalmente, em casa depara com outro homem no seu apartamento com sua mulher. Expulsou-o de casa nu como havia vindo ao mundo e passou, o adúltero, ser o perseguido e ele, devidamente recomposto, retornou aos braços de Marialva, ondes tudo havia iniciado.

 

21. Em 29/08/2020 deparei, no Sebo Releitura da Av. República Argentina – Curitiba, com El Diálogo de Civilizaciones, pronunciamento de Fidel Castro Ruz por ocasião da “Conferencia de Naciones Unidas sobre o  Medio Ambiente y Desarrollo” em 12 de junho de 1992, no Rio de Janeiro. E o discurso pronunciado na Conferência Mundial “Diálogo de Civivilizaciones” em Havana.

As 80 páginas do Discurso de Fidel foi uma aula de história, filosofia, de sociologia, de política, de economia, de educação, de relações internacionais, de respeito, de cuidados, e de combates. Tudo isso me levou a ler novamente todo o texto para, mais uma vez, sentir a satisfação de ter lido e relido um grande ensinamento. Super recomendo.

 

22.  Em 04.09 reencontrei Moacyr Scliar num sebo da Pç. Osório. Lá estava A língua de três pontas – Crônicas e citações sobre a arte de falar mal, dos outros. Leve, solto e engraçado. Falar mal dos outros é uma arte milenar. Falar mal são coisas que o ser humano faz desde que o mundo é mundo. Mas, quando a crítica e a maledicência trazem a marca do talento, podemos ter um verdadeiro banquete literário, como mostra Moacyr Scliar. Algumas citações são a mais pura verdade. Por exemplo: “o que mais um intelectual detesta, é outro intelectual”; “A justiça, como se sabe, é a busca da Verdade. Ao contrário da Lei, que, como ninguém ignora, é o encobrimento da mentira” e por aí vai!

 

23. Em 05.09, no mesmo sebo em que encontrei Moacyr Scliar, encontrei-me com a Isabel Allende. Dessa vez a conversa é sobre o seu livro Amor. Sobre ele falamos em espanhol. Se alguém e capaz de descrever com maestria, personalidade e humor a natureza caprichosa do amor, é ela. Faz uma recopilação de senas de amor selecionadas dentre os seus livros. Da La casa de los espíritus, passando por Eva Luna, El plan infinito, Hija de la fortuna, La islã bajo el mar, Retrato em sépia, El Zorro, Inês del alma mia e tantos outros. É uma leitura gostosa, não deixando de excitante. É um convite a submergir-se na leitura, sonhar e sorrir. A  grande narradora chilena escreve abertamente sobre suas experiências no sexo e no amor.

“Um encontro íntimo com uma das escritoras mais lida do mundo, que revela esse ‘mistério do proibido que está tão em moda’”.

 

24. Na sequencia deparei novamente com o grande gaúcho Moacyr Scliar. Conversamos sobre o seu Os vendilhões do Templo. O episódio da expulsão dos vendilhões do Templo por Jesus Cristo ocupa apenas dois versículos do Evangelho, mas ganhou, ao longo dos séculos lugar de destaque na imaginação ocidental, simbolizando o conflito entre os valores espirituais e o interesse material. A partir daí, Scliar cria uma narrativa que se estende por três épocas.

Primeiro em Jerusalém de 33 d.C. O episódio serve como cenário para uma reflexão sobre o espírito mercantilista e seus conflitos com a consciência religiosa e política.

A segunda parte se passa em 1635, numa pequena missão jesuítica no sul do Brasil. O recém-chegado padre Nicolau, que não fala guarani, vê-se diante de uma situação angustiante: o velho sacerdote que tomava conta da comunidade indígena morre subitamente. Um forasteiro se oferece como interprete, mas em pouco tempo seu caráter suspeito de manifesta.

No terceiro momento chegamos a 1997: na cidade situada na antiga redução indígena, a esquerda acaba por conquistar a prefeitura. Um assessor de imprensa vinda da gestão anterior testemunha as mudanças políticas em curso.

Os vendilhões do Templo é uma parábola sobre as relações entre crença e poder, interesses e ideais, e culmina no Brasil de hoje. Com seu estilo fluente e caloroso, repleto de anedotas e digressões, Scliar engaja o seu interlocutor em um exercício de fantasia histórica.

 

25.  Em 06.10, no Sebo Líder, encontrei uma certa Amanda Scott. É americana da California. Como nada sei de inglês e ela nada de português, fomos auxiliados por pela argentina Mariana Dimopulos e conversamos em espanhol sobre El rescate de la doncela.

A narrativa se passa no século XIV na Escócia. É bastante interessante para quem gosta de história. Embora seja uma ficção há momentos de realismo, sobretudo quando se trata da estrutura política e da influência exercida por famílias influentes. Já nos capítulos finais fazem referência à Ordem dos Templários: assunto do qual gosto muito. É uma boa leitura.

 

26. Em 13.10, em passagem pelo aeroporto Afonso Pena – Curitiba – encontrei, por acaso com Carlos Ruiz Zafón por meio de Marina, seu quarto romance publicado. Neste romance Zafón mergulha nos subterrâneos da parte velha da cidade de Barcelona. Marina, filha única de um senhor – Germán - hipocondríaco portador de grave doença, que se encontra, por acaso, com Óscar Drai de que se torna amiga. Ao final, depois de uma incrível aventura narrada ao longo da obra, descobre-se que, quem portava a grave doença era Marina.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

HOJE FUI SENTIR MINHA MÃE

 

HOJE FUI SENTIR MINHA MÃE

 

Sabe, há muito sentia a necessidade de uma visita, mas algumas implicações me desestimulavam: viagem, hotel ou mesmo casa de amigos. Confesso que tenho, normalmente, muita preguiça de sair de casa. Viajar então...! É um transtorno. Outro problema são os hotéis: os quartos me são impessoais, hostis, solitários, violados, violentados e com cheiro, sempre desagradável, de não sei quem. Por outro lado, não me sinto muito bem como hospede, mesmo de amigos mais próximos. Sinto-me invasor, quebro a rotina das pessoas, por mais que digam ao contrário. Reconheço que é um comportamento, até certo ponto provinciano, mas sou assim!

 

Por vários meses fui programando esse encontro, mas sempre postergando, apesar do crescente sentimento de culpa, de abandono até mesmo de desrespeito. Não era uma obrigação, mas uma vontade irresistível de renovar, de sentir e fortalecer os laços. Não deixá-los soltos no esquecimento. Sentia mais e mais a necessidade de sentir minha mãe que, de tanto tempo que passou, já não me lembrava mais.

 

Desembarquei na rodoviária de Anápolis às seis da manhã do dia 28/03/2013. Tomei um taxi e fui ao tão ansiado encontro. Ao longo do trajeto, fui me preparando. Ao chegar, não acionaria a campainha para me anunciar. Certamente não seria convidado a entrar. Tampouco seria recebido com um sorriso estampado no rosto ou com um daqueles abraços efusivos de bienvenido. Não me sentaria na cadeira da sala de estar e nem um cafezinho seria servido. Estava preparado para uma visita solitária. Ou, quando muito, em companhia da saudade acumulada durante os sessenta anos de separação.                          

 

Cheguei! A porta estava aberta e lá estava ela. O sinônimo da minha saudade. Um leve sorriso nos lábios, o mesmo de quando saiu de casa para ir ao médico e não mais voltar, se abriu pra mim.  Me senti abraçado, bem-vindo e acariciado. Sentei-me no mármore frio e me senti no seu próprio colo: agradável, macio e aconchegante, como nunca sentira antes.

 

Fiquei por alguns instantes observando moradas eternas. Flores, devaneando, fora do tempo. Isso me transmite um estranho sentimento de paz que arrefece o fogo da tristeza. O aparente silêncio que inicialmente ficou entre nós, aos poucos foi se dissipando. A brisa suave do São Miguel era um sussurro de perguntas que resistiram ao tempo, cochichadas aos nossos ouvidos. Quis falar da minha vida. Que bobagem! As mães têm sexto sentido. Sabem de tudo sobre seus filhos. Estão sempre ao lado deles não importando em qual dimensão se encontrem. Mães sentem os sentimentos que os filhos sentem. É uma relação visceral, uma simbiose que existe desde o instante primeiro e resiste à eternidade.

 

Assim passaram-se as horas e eu me sentindo bem e muito bem-vindo. Não me despedi, apenas saí prometendo não ficar mais por tanto tempo ausente. Levantei-me, estava sentado sobre a lápide um pouco enegrecida pelo tempo, nela um epitáfio simples mandado ser gravado por meu pai, no dele e em nosso nome: GRATIDÃO E SAUDADES DO ESPOSO E FILHOS. 12/09/1912  25/01/1953.

 

Acendi uma vela, mas a brisa suave do São Miguel insistiu em não deixá-la acesa, como se quisesse dizer: nessa conversa, silenciosa, não cabe testemunhas.

E saí com um até breve.

 

O HOMEM INVISÍVEL

O HOMEM INVISÍVEL

 

Na missa da padroeira, sentei-me numa cadeira lateral. Além dos celebrantes via-se muitos rostos conhecidos. Pessoas que moravam ali e outras tantas que foram para lá com o mesmo fim: celebrar a Virgem do Carmo.

Dentre os rostos conhecidos um me chamou a atenção. O olhar profundamente triste, perdido no espaço, no tempo e distante desse mundo. Das muitas vezes que estive lá, esta foi a primeira que vi o Manoel entre tantas pessoas. Mesmo com aquele olhar tristonho estava muito compenetrado de mãos dadas com a sua Joana, ocupando o lugar que, como cidadão, era seu por direito. Até então o via sempre periférico, arredio, solitário, ajudando na casa da festa, mas invisível

 

Voltei para o passado. Retornei à minha infância e pus-me a recordar, esforçando-me ao máximo para lembrar de detalhes.

 

          Chegaram não se sabe quando. Pai, mãe e filho vieram de terras distante, Porangatu – GO. Carregavam tudo que tinham. Se estabeleceram sem conhecer ninguém, nessa terra para eles estranha. Compraram uma pequena casa na rua que passa nos fundos da Igreja. Moraram por pouco tempo. Desfeito a compra, foram morar noutro canto, um pouco mais distante da Igreja Matriz, bem próximo ao grupo escolar. Logo faleceu o pai. Por algum motivo, ele e a mãe se mudaram. Foram morar numa pequena casa de dois cômodos, com paredes de enchimento, coberta com palha piaçava. Ficava no caminho que leva ao Arpoim, já bem próximo ao córrego Sucuri.

          Viviam sós, isolados, enxergados por todos, mas vistos por muito poucos. Os mesmos poucos que os ajudavam. Em época de plantio alguém lhes dava um “eito” ou uma “quarta” de terra. Plantavam de quase tudo um pouco. O que fosse necessário para matar a fome por algum tempo.  Uma muda de roupa usada para cobrir as vergonhas, um ou outro remédio, quando as “meizinhas” do mato não davam volta nas dores. Fora a isso procuravam meios para sobreviver no dia a dia. Manoel mal falava, quando muito gaguejava algumas palavras. Nascera com a língua presa. Da fala não tinha o dom. Seguiam sua sina, rompendo, como Deus quisesse.

Vez por outra, à noite, “faxinavam” com tochas de pati seco nas margens do Sucuri. Quando a sorte sorria, conseguiam um peixe bom. Usavam as costas do cutelo só pra quebrar o espinhaço. Imobilizava a “traíra” e garantia a refeição do dia seguinte. Matava a fome e seguiam vivendo, invisíveis. Um latido diferente da cadela, como o de costume, indica que algo está “acuado”: um buraco, um tatu, uma enxada, pronto, a comida pra mais dois dias estava garantida. Mais dois dias invisíveis. Abóbora de monturo, dois pés de anduzeiro, alguns pés de mandioca mansa, maxixe e quiabo, misturas para a canja. Proteína fornecida por ovos de duas ou três galinhas preservadas à exaustão, se alimentando de gorgulho, folhas, minhocas, gafanhotos, grilos, e tantos outros insetos.

Não se sabe por qual motivo tiraram o nome de gente da mãe e lhe deram nome de bicho. Maria Marques passou a ser Maria “Mucura” – mamífero onívoro solitário, marsupial, espécie de gambá de orelha branca. Manoel, por consequência, passou a ser Manoel de Maria “Mucura”. Mas isso pouco ou nada para eles importava. Seguiram assim.

Ao morrer, Maria entregou seu único filho para o mundo criar. Chegou a vez de Manoel perder o Marques do nome. Assim como a defunta mãe, deram-lhe, por definitivo, também, nome de bicho e passou a ser chamado Manoel Mucura. Pouco lhes importava ter nome de bicho. Haviam se transformado em natureza. Eram terra, mata, rios e animais. Por que não mucura?

Maria, sábia, só pode deixar para o filho aquilo que aprendeu com as necessidades: pedir silenciosamente. Chegar na hora certa aos lugares certos, onde fosse possível uma boa alma lhe matar a fome. Por anos assim foi vivendo. Sozinho, sem nenhum documento, não era só um invisível social, mas também um invisível legal. Manoel foi por muito tempo um pária.

Já adulto, um anjo, travestido de mulher, pôs-se em seu caminho e lhe deu guarida. Domingas providenciou os documentos necessários para torná-lo cidadão reconhecido pelo estado. De pária, tornou-o visível legal.  Pôde, assim, garantir o auxílio oficial garantido pelo Estado aos mais necessitados. Agora com casa própria, por interseção do seu anjo, tem onde se abrigar. Nesse novo tempo, deixou de ser enxergado para ser visto por muitos.

Em época dos festejos, adornado com penachos, saiote de seda colorido sobre as calças e um reco-reco feito de cabaça, Manoel dança o lundu no grupo de congos que sai pelas ruas de Monte do Carmo no dia 18 de julho, na festa da Padroeira. Mas um homem só, é um homem solitário. O seu anjo já o sabia. Intercedeu mais uma vez e lhe proporcionou uma companheira, Joana Reis Rodrigues. Casaram-se no dia 14 de fevereiro de 2014 no cartório de Registro Civil. Com ela, dança nos bailes públicos da “Casa da Festa” na festa da Padroeira.

 

Hoje, o octogenário, embora continue tendo o nome de bicho, Manoel, de pária, enfim, foi feito visível.